Introdução
A relação entre o ser humano e a tecnologia é tão antiga quanto a própria humanidade. Desde as primeiras ferramentas de pedra até os sistemas de inteligência artificial mais sofisticados, nossa espécie tem demonstrado uma capacidade notável de criar e adaptar tecnologias para transformar o mundo ao seu redor. No entanto, o que torna essa relação particularmente fascinante não são apenas as tecnologias em si, mas as concepções que desenvolvemos sobre elas — os significados, metáforas e narrativas que construímos para compreender e integrar essas inovações em nossas vidas.
Este artigo propõe uma jornada através da evolução das concepções humanas sobre duas tecnologias transformadoras: a eletricidade e a inteligência artificial. Embora separadas por séculos de desenvolvimento científico, ambas compartilham características notáveis em termos de como foram inicialmente percebidas, temidas, celebradas e, eventualmente, normalizadas na sociedade. Ao examinar essas concepções em diferentes contextos históricos e culturais, podemos obter insights valiosos sobre como construímos significado em torno das tecnologias e como essas construções, por sua vez, moldam o próprio desenvolvimento tecnológico.
A tecnologia é, em sua essência, uma forma de construir o mundo. E ao construir o mundo, também construímos a nós mesmos e nossas formas de pensar.
Nossa análise se baseia em uma abordagem interdisciplinar, combinando perspectivas da filosofia da tecnologia, história da ciência, antropologia cultural e estudos de ciência e tecnologia. Começaremos explorando os fundamentos filosóficos que sustentam nossas concepções tecnológicas, examinando como diferentes tradições de pensamento — desde o determinismo tecnológico até o construtivismo social — oferecem lentes distintas para compreender a relação entre tecnologia e sociedade.
Em seguida, mergulharemos na evolução histórica das concepções sobre a eletricidade, desde as primeiras observações de fenômenos elétricos na antiguidade até sua completa integração na vida cotidiana moderna. Analisaremos como a eletricidade passou de um fenômeno misterioso, frequentemente associado ao sobrenatural, para se tornar uma infraestrutura invisível que sustenta praticamente todos os aspectos da vida contemporânea.
De forma similar, examinaremos as variações culturais nas concepções sobre inteligência artificial, explorando como diferentes sociedades e tradições culturais interpretam e respondem ao desenvolvimento de máquinas "inteligentes". Veremos como essas concepções são influenciadas por narrativas religiosas, filosóficas e culturais preexistentes, e como elas, por sua vez, influenciam o próprio desenvolvimento e implementação de sistemas de IA.
As concepções que desenvolvemos sobre tecnologias não são meros reflexos passivos de realidades técnicas objetivas, mas construções ativas que emergem da interação entre fatores técnicos, sociais, culturais e históricos. Essas concepções não apenas refletem como entendemos as tecnologias, mas também moldam ativamente como as desenvolvemos, regulamos e integramos em nossas vidas.
Por fim, realizaremos uma análise comparativa das concepções sobre eletricidade e inteligência artificial, identificando padrões recorrentes, divergências significativas e lições potenciais que podemos extrair dessa comparação. Ao fazer isso, esperamos contribuir para uma compreensão mais rica e matizada da relação entre humanos e tecnologia, uma que reconheça tanto a agência humana na construção de significados tecnológicos quanto o papel das tecnologias na formação de nossas visões de mundo e de nós mesmos.
Fundamentos Filosóficos
Antes de mergulharmos nas concepções específicas sobre eletricidade e inteligência artificial, é fundamental estabelecer as bases filosóficas que informam nossa compreensão da tecnologia em geral. Essas tradições filosóficas não apenas fornecem ferramentas conceituais para analisar as relações entre tecnologia e sociedade, mas também revelam pressupostos subjacentes que moldam nossas próprias concepções tecnológicas.
Determinismo Tecnológico vs. Construtivismo Social
Uma das tensões fundamentais no estudo das concepções tecnológicas reside entre as perspectivas do determinismo tecnológico e do construtivismo social. O determinismo tecnológico, associado a pensadores como Jacques Ellul e Marshall McLuhan, sustenta que a tecnologia segue uma lógica interna de desenvolvimento que é largamente independente de fatores sociais e culturais. Nessa visão, a tecnologia é a força motriz da história, moldando sociedades e culturas mais do que sendo moldada por elas.
Em contraste, o construtivismo social da tecnologia, desenvolvido por estudiosos como Wiebe Bijker e Trevor Pinch, argumenta que as tecnologias são fundamentalmente produtos sociais, moldados por negociações, conflitos e compromissos entre diversos grupos sociais. De acordo com essa perspectiva, não há nada inevitável ou predeterminado sobre o desenvolvimento tecnológico; em vez disso, as tecnologias emergem de processos sociais complexos e contingentes.
Determinismo Tecnológico
Visão de que a tecnologia segue uma lógica interna de desenvolvimento e é a principal força motriz da mudança social e cultural. A sociedade deve se adaptar às exigências da tecnologia.
Construtivismo Social
Perspectiva que entende as tecnologias como produtos de processos sociais, moldadas por valores, interesses e negociações entre diferentes grupos. A tecnologia é socialmente construída.
Fenomenologia da Tecnologia
A tradição fenomenológica, representada por filósofos como Martin Heidegger e Don Ihde, oferece outra perspectiva valiosa para compreender nossas concepções tecnológicas. Heidegger, em seu influente ensaio "A Questão da Técnica", argumenta que a essência da tecnologia moderna não é tecnológica, mas uma forma particular de revelar o mundo — especificamente, como um "fundo de reserva" (Bestand) a ser otimizado e explorado. Para Heidegger, o perigo da tecnologia moderna não reside em máquinas específicas, mas na forma como ela nos encoraja a ver tudo, inclusive a nós mesmos, como recursos a serem otimizados.
A essência da tecnologia não é nada tecnológico. Assim, nunca experienciaremos nossa relação com a essência da tecnologia enquanto concebermos e praticarmos apenas o tecnológico.
Expandindo a análise de Heidegger, Don Ihde desenvolveu uma fenomenologia mais nuançada das relações humano-tecnologia, identificando diferentes tipos de relações: incorporação (quando usamos tecnologias como extensões de nossos corpos), hermenêutica (quando interpretamos o mundo através de tecnologias), alteridade (quando interagimos com tecnologias como quase-outros) e de fundo (quando as tecnologias formam o contexto não tematizado de nossas experiências). Essa taxonomia oferece ferramentas valiosas para analisar como nossas concepções tecnológicas variam dependendo do tipo de relação que estabelecemos com diferentes tecnologias.
Teoria Crítica da Tecnologia
A teoria crítica da tecnologia, desenvolvida por pensadores como Andrew Feenberg, busca uma posição intermediária entre o determinismo tecnológico e o construtivismo social radical. Feenberg reconhece que as tecnologias incorporam valores e interesses sociais, mas também que, uma vez estabelecidas, podem adquirir uma inércia que constrange escolhas futuras. Sua abordagem enfatiza o potencial para a democratização do desenvolvimento tecnológico, argumentando que os cidadãos comuns deveriam ter mais voz nas decisões sobre quais tecnologias são desenvolvidas e como são implementadas.
Essa perspectiva é particularmente relevante para nossa análise das concepções sobre eletricidade e inteligência artificial, pois destaca como essas concepções não são apenas reflexos passivos de realidades técnicas, mas também expressões de valores, interesses e relações de poder. As narrativas que construímos em torno dessas tecnologias — sejam elas de progresso inevitável, risco existencial ou emancipação social — têm implicações reais para como as desenvolvemos, regulamos e integramos em nossas sociedades.
Pós-Fenomenologia e Materialismo
Desenvolvimentos mais recentes na filosofia da tecnologia, como a pós-fenomenologia de Peter-Paul Verbeek e o novo materialismo de Jane Bennett e Karen Barad, têm enfatizado ainda mais a agência material das tecnologias e a natureza entrelaçada das relações humano-tecnologia. Essas abordagens rejeitam dicotomias simples entre humanos e tecnologias, sujeito e objeto, destacando em vez disso como humanos e tecnologias se constituem mutuamente em redes complexas de relações.
Verbeek, por exemplo, argumenta que as tecnologias não apenas mediam nossas experiências do mundo, mas também nossas experiências de nós mesmos e nossas decisões.
Concepções sobre Eletricidade
Evolução Histórica
Antiguidade - Fenômenos Estáticos
Os antigos gregos, como Tales de Mileto (c. 624-546 a.C.), observaram que o âmbar, quando esfregado, atraía objetos leves. A palavra "eletricidade" deriva do termo grego para âmbar, "elektron". Estes fenômenos eram frequentemente interpretados em termos místicos ou como manifestações de forças vitais ocultas.
Século XVIII - A Era dos Experimentos
Benjamin Franklin (1706-1790) realizou seus famosos experimentos com pipas durante tempestades, estabelecendo a conexão entre raios e eletricidade. A eletricidade era frequentemente concebida como um "fluido" misterioso que podia fluir entre objetos. Demonstrações públicas de fenômenos elétricos tornaram-se populares, muitas vezes apresentadas como entretenimento espetacular ou até mesmo como curas milagrosas.
Século XIX - Industrialização da Eletricidade
Michael Faraday (1791-1867) descobriu a indução eletromagnética, abrindo caminho para a geração prática de eletricidade. Thomas Edison (1847-1931) e Nikola Tesla (1856-1943) desenvolveram sistemas de distribuição de energia elétrica. A eletricidade começou a ser concebida como uma força domesticada que poderia transformar a vida cotidiana e impulsionar a industrialização.
Século XX - Normalização
A eletricidade tornou-se uma utilidade comum, transformando-se de maravilha tecnológica em infraestrutura invisível. A eletrificação rural e urbana alterou fundamentalmente o ritmo da vida diária. A eletricidade passou a ser concebida como um direito básico e um indicador de desenvolvimento.
Variações Culturais
Cultura/Região | Concepção Predominante | Manifestações Culturais |
---|---|---|
Europa Ocidental | Força da natureza domesticada | Literatura gótica (Frankenstein), exposições públicas |
América do Norte | Símbolo de progresso e modernidade | Feiras mundiais, publicidade de eletrodomésticos |
Japão | Força de transformação e renascimento | Integração com tradições estéticas, design de iluminação |
Regiões Rurais | Intrusão da modernidade | Resistência inicial, depois adoção como necessidade |
Estas variações culturais na concepção da eletricidade ilustram como uma mesma tecnologia pode ser interpretada e integrada de maneiras distintas em diferentes contextos socioculturais. Enquanto algumas culturas enfatizavam o potencial transformador e quase mágico da eletricidade, outras a viam primariamente como uma ferramenta prática para o progresso econômico e social.
Concepções sobre Inteligência Artificial
Assim como a eletricidade no passado, a inteligência artificial representa hoje uma tecnologia transformadora que está sendo interpretada e concebida de diversas maneiras por diferentes culturas e grupos sociais.
Dimensão Histórica das Concepções sobre IA
As concepções sobre inteligência artificial evoluíram significativamente desde sua emergência formal como campo científico. Nilsson (2010, p. 13) observa que "a IA como disciplina formal surgiu de convergências intelectuais nas décadas de 1940 e 1950, embora suas raízes conceituais se estendam muito mais longe na história humana".
McCorduck (2004) identifica três tradições principais que influenciaram as concepções iniciais da IA: a tradição religiosa (criação artificial de vida), a tradição filosófica (natureza da mente e conhecimento) e a tradição tecnológica (automação e computação). Essa multiplicidade de origens contribuiu para a diversidade de concepções que caracteriza o campo.
"O estudo procederá com base na conjectura de que, em princípio, todo aspecto da aprendizagem ou qualquer outra característica da inteligência pode ser descrito tão precisamente que uma máquina pode ser construída para simulá-lo." (McCARTHY et al., 1955, apud NILSSON, 2010, p. 52)
Este otimismo inicial sobre as possibilidades da IA reflete o que Dreyfus (1972) posteriormente criticaria como "a tradição racionalista" – a crença de que toda inteligência é formalizável:
"O fracasso da inteligência artificial em cumprir suas promessas iniciais... não é acidental, mas resulta de pressupostos filosóficos fundamentalmente equivocados sobre a natureza da inteligência humana, pressupostos enraizados profundamente na tradição filosófica ocidental." (DREYFUS, 1972, p. 67)
Os subsequentes "invernos da IA" – períodos de redução de interesse e financiamento – e renascimentos refletem mudanças nas concepções dominantes sobre o que é a IA e o que ela pode realizar. Russell e Norvig (2020, p. 24) observam que "a história da IA tem sido caracterizada por ciclos de entusiasmo excessivo seguidos por decepção e crítica".
Bostrom (2014) identifica uma mudança significativa nas concepções contemporâneas da IA, com maior atenção a questões de segurança, alinhamento de valores e riscos existenciais:
"Estamos no limiar de uma era em que máquinas podem, em princípio, superar radicalmente os humanos em inteligência geral. Esta transição pode representar o desenvolvimento mais significativo na história da humanidade... trazendo tanto oportunidades extraordinárias quanto riscos existenciais." (BOSTROM, 2014, p. 4)
Variações Culturais nas Concepções de IA
As concepções sobre inteligência artificial variam significativamente entre diferentes culturas e regiões do mundo. Jasanoff (2015, p. 14) argumenta que "os imaginários sociotécnicos – visões coletivamente mantidas sobre futuros tecnológicos desejáveis – são profundamente influenciados por tradições culturais, religiosas e políticas".
Perspectiva Ocidental
Nas sociedades ocidentais, a IA é frequentemente concebida através de duas lentes contrastantes: como uma ferramenta para aumentar a produtividade e eficiência econômica, ou como uma ameaça existencial que poderia eventualmente superar e substituir a humanidade. Geraci (2006, p. 231) observa: "As narrativas escatológicas sobre IA nos Estados Unidos frequentemente assumem formas religiosas que refletem ansiedades culturais profundas sobre a singularidade e o valor da experiência humana em um mundo de máquinas cada vez mais inteligentes."
Perspectiva Oriental
Em contraste, algumas culturas orientais, particularmente o Japão, tendem a conceber a IA de maneira mais harmoniosa e integrada. Robertson (2018, p. 89) documenta: "A aceitação amplamente positiva de robôs e IA no Japão não é simplesmente resultado de políticas governamentais ou interesses corporativos, mas está enraizada em concepções shintoístas que não estabelecem dicotomias rígidas entre humano e não-humano, animado e inanimado."
Estas diferenças culturais manifestam-se em atitudes públicas, abordagens regulatórias e prioridades de desenvolvimento. Zhou (2019, p. 442) contrasta as abordagens chinesa e americana:
"Enquanto o desenvolvimento de IA nos EUA é impulsionado principalmente por iniciativas corporativas privadas, a estratégia chinesa representa um exemplo de capitalismo estatal, com planejamento centralizado e integração explícita da IA na estratégia nacional de desenvolvimento."
Mesmo dentro de sociedades específicas, concepções sobre IA variam significativamente entre grupos sociais. Pesquisas recentes sobre percepções públicas da IA no Brasil revelam um espectro de atitudes:
"33% dos brasileiros se sentem otimistas em relação à IA, enquanto 32% demonstram preocupação e 34% permanecem indecisos. A aceitação é maior para usos cotidianos, mas a confiança cai drasticamente em áreas críticas como saúde." (CGEE, 2023, p. 14)
Concepções Filosóficas Contemporâneas da IA
As diferentes abordagens filosóficas da IA representam não apenas divergências teóricas acadêmicas, mas fundamentam concepções distintamente diferentes sobre o que a IA é e pode se tornar. Floridi (2019, p. 32) argumenta que "não há uma narrativa única e unificada da IA, mas múltiplas interpretações fundamentadas em diversas tradições filosóficas".
Simulação vs. Replicação
Searle (1980), com seu famoso argumento do "quarto chinês", defende uma concepção da IA como simulação: sistemas de IA podem simular comportamentos inteligentes sem genuinamente compreender ou possuir estados mentais.
"Nenhum programa de computador por si só é suficiente para dar a um sistema uma mente. Os programas são puramente sintáticos, enquanto as mentes têm semântica, e a sintaxe por si só não é constitutiva nem suficiente para a semântica." (SEARLE, 1980, p. 417)
Funcionalismo
Filósofos como Dennett (1991) defendem uma concepção funcionalista, argumentando que se um sistema exibe todos os comportamentos associados à inteligência, não há base para negar que possua inteligência genuína.
"Não há uma linha divisória mágica entre sistemas que são 'meramente' simulações de mentes e sistemas que 'realmente' têm mentes. O que importa são as capacidades, não a substância." (DENNETT, 1991, p. 281)
Estas diferentes concepções não são meramente abstratas, mas moldam ativamente o desenvolvimento e regulação da IA. A ênfase contemporânea em "IA centrada no humano" reflete uma concepção específica da relação adequada entre humanos e sistemas de IA. Shneiderman (2022, p. 12) articula:
"A concepção de IA centrada no humano rejeita tanto o determinismo tecnológico quanto o medo existencial, focando em como a tecnologia pode ampliar as capacidades humanas enquanto preserva a autonomia, dignidade e responsabilidade humanas."
Outra distinção importante ocorre entre concepções "formalistas" versus "corporizadas" da inteligência. Clark (2003) e outros teóricos da mente estendida têm desenvolvido concepções da inteligência como fundamentalmente distribuída e situada:
"A mente humana não está contida apenas dentro do crânio, mas se estende ao ambiente através de processos de acoplamento sensório-motor e manipulação de artefatos externos. Esta perspectiva sugere que deveríamos conceber a IA não como tentativa de replicar mentes isoladas, mas como componentes de sistemas cognitivos estendidos humano-tecnologia." (CLARK, 2003, p. 42)
Medos e Esperanças
Medos
- Desemprego tecnológico em massa
- Vigilância e controle social
- Perda de autonomia humana
- Cenários de "superinteligência" hostil
- Amplificação de preconceitos existentes
Esperanças
- Avanços médicos e científicos
- Solução de problemas complexos (clima, pobreza)
- Aumento da produtividade e prosperidade
- Assistência personalizada e acessível
- Democratização do conhecimento
Estas concepções contrastantes da IA refletem não apenas diferentes tradições culturais, mas também diferentes valores sociais e prioridades. Enquanto algumas sociedades enfatizam os riscos e a necessidade de cautela, outras destacam as oportunidades e o potencial transformador positivo da IA.
Análise Comparativa
Ao comparar as concepções culturais sobre eletricidade e inteligência artificial, emergem padrões interessantes que podem nos ajudar a compreender como a humanidade processa e integra tecnologias transformadoras.
Padrões Recorrentes nas Concepções Tecnológicas
Minha análise comparativa das concepções sobre eletricidade e inteligência artificial revela padrões recorrentes que transcendem tecnologias específicas. Nye (2006, p. 17) observa que "cada nova tecnologia é inicialmente compreendida através de metáforas e analogias derivadas de tecnologias anteriores e padrões culturais existentes".
Do Místico ao Mundano
Um padrão recorrente é a transição da compreensão místico-religiosa para a científico-técnica. Pacey (1983, p. 86) argumenta:
"A história das concepções tecnológicas frequentemente segue um padrão de desmistificação – fenômenos inicialmente interpretados em termos sobrenaturais ou místicos são gradualmente reinterpretados em termos mecânicos e científicos."
Esta transição é evidente tanto na eletricidade – que evoluiu de "fluido mágico" para força física compreensível – quanto na inteligência artificial – inicialmente concebida em termos quase-místicos de "mentes eletrônicas", gradualmente recontextualizada em termos de algoritmos e redes neurais.
O Ciclo de Hype Tecnológico
Outro padrão recorrente é o que Sturken e Thomas (2004) identificam como o "ciclo de hype tecnológico" – uma progressão de otimismo excessivo para desapontamento e eventualmente uma apropriação normalizada:
"Novas tecnologias são frequentemente acompanhadas por fantasias sociais de transformação radical – positivas ou negativas – que raramente se materializam exatamente como imaginado, cedendo eventualmente a formas mais mundanas de integração social." (STURKEN; THOMAS, 2004, p. 14, tradução minha)
Este padrão manifestou-se claramente na história da eletricidade, que progrediu de maravilha espetacular a infraestrutura invisível e naturalizada. A inteligência artificial segue trajetória similar, com ciclos de euforia e "invernos" seguidos por uma gradual normalização em aplicações cotidianas.
O Drama Tecnológico
Um terceiro padrão identificado por Pfaffenberger (1992) é o da "drama tecnológica" – um processo dialético onde a introdução de novas tecnologias provoca respostas compensatórias e ajustes culturais:
"A introdução de uma nova tecnologia frequentemente desencadeia um processo dialético de afirmação, rejeição e reconstitução, através do qual diferentes grupos sociais negociam não apenas o papel da tecnologia, mas questões fundamentais de poder, autoridade e valores." (PFAFFENBERGER, 1992, p. 503, tradução minha)
Este processo é evidente nas respostas sociais tanto à eletrificação quanto à introdução da IA, com grupos usando estas tecnologias como arenas para negociar questões mais amplas de identidade cultural e relações sociais.
Diferenças Significativas entre as Concepções da Eletricidade e da IA
Apesar dos padrões recorrentes, existem diferenças significativas entre as concepções da eletricidade e da inteligência artificial.
Causalidade Física versus Intencionalidade
A mais fundamental talvez seja o que Searle (1980) identifica como a diferença entre "causalidade física" e "intencionalidade":
"A eletricidade opera exclusivamente no domínio da causalidade física, enquanto a inteligência artificial aspira a operar no domínio da intencionalidade – crenças, desejos, intenções e compreensão. Esta diferença qualitativa gera questões filosóficas fundamentalmente novas." (SEARLE, 1980, p. 424, tradução minha)
Esta diferença qualitativa resulta em concepções distintas sobre os limites e possibilidades destas tecnologias. Boden (2016, p. 67) observa:
"A eletricidade nunca foi concebida como potencialmente autônoma ou capaz de transcender controle humano em sentido genuíno. A IA, por outro lado, frequentemente é imaginada como tendo potencial para autonomia genuína e até superinteligência que poderia transcender limites humanos."
Opacidade versus Previsibilidade
Outra diferença significativa reside no que Floridi (2019) identifica como a "opacidade" dos sistemas de IA contemporâneos. Enquanto a eletricidade, apesar de sua invisibilidade, opera segundo princípios físicos bem compreendidos, muitos sistemas de IA contemporâneos – especialmente aqueles baseados em aprendizado profundo – possuem uma opacidade fundamental:
"Diferentemente da eletricidade, cujos efeitos são previsíveis conforme leis físicas, sistemas de IA contemporâneos frequentemente funcionam como 'caixas pretas', onde nem mesmo seus criadores podem explicar completamente o raciocínio por trás de decisões específicas." (FLORIDI, 2019, p. 54, tradução minha)
Esta opacidade gera concepções distintamente diferentes sobre governança e responsabilidade. Mittelstadt et al. (2016, p. 3) argumentam que "a opacidade dos sistemas de IA levanta questões éticas e epistemológicas sem paralelo em tecnologias anteriores", resultando em concepções mais complexas e ambivalentes.
Dimensão Política Inerente
Uma terceira diferença significativa é o que Crawford (2021) identifica como a natureza "política" da IA contemporânea:
"Diferentemente da eletricidade, que representa primariamente uma força física domesticada, a IA contemporânea incorpora explicitamente decisões políticas e normativas sobre classificação, categorização e tratamento diferencial de seres humanos. Esta dimensão intrinsecamente política gera concepções distintamente diferentes." (CRAWFORD, 2021, p. 213, tradução minha)
Estas diferenças fundamentais entre eletricidade e IA – intencionalidade versus causalidade física, opacidade versus previsibilidade, e normatividade política inerente – resultam em concepções qualitativamente distintas, apesar dos padrões recorrentes identificados anteriormente.
Conclusões e Implicações
Assim como a eletricidade no passado, a inteligência artificial representa hoje uma tecnologia transformadora que está sendo interpretada e concebida de diversas maneiras por diferentes culturas e grupos sociais.
As concepções sobre inteligência artificial variam significativamente entre diferentes culturas e regiões do mundo. Jasanoff (2015, p. 14) argumenta que "os imaginários sociotécnicos – visões coletivamente mantidas sobre futuros tecnológicos desejáveis – são profundamente influenciados por tradições culturais, religiosas e políticas".
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